DA SINGULARIDADE

 

            A melodia de YESTERDAY do Paul MCartney  tem uma ligeira mudança de tonalidade, logo ao princípio, como se fosse uma raga das não gregas que SÃO, como se sabe,  aqueles  modos gregos (lídio, dórico, etc e tal),  sôbre os quais se edificou a música ocidental.  A música indiana, tem nas suas diversas RAGAS outras sequencias que as gregas. Tem raga pra tocar no nascer do sol, outra para o por do sol e muito mais. A pergunta singela é ésta: qual a intenção oculta da “raga” de Yesterday? Paul declarou que sonhou com a melodia e de manhã foi logo tocá-la no piano. Deu o nome de ovos mexidos ou coisa parecida.

       A singularidade de Yesterday veio do fundo de um sonho, para tocar o mundo.

 

O modo de tocar de Thelonious Monk.

 

 

       Existe uma canção do Lennon (Jealous Guy) que a mim parece um sortilégio, que a melodia está contando uma outra estória, muito antiga, só pra mim. Penso comigo , cada vez que a ouço,  que seja a descrição de um mito qualquer. Mas Yesterday não. Não é  descrição,  mas uma chave para alguma porta. Porta que leva para lá de onde ela veio,  até ao encontro, dentro de um sonho, de um músico brincalhão ou não.

 

 

     

      A prostituição do SINGULAR levada a cabo por muitos pintores famosos do século XX (´Miró é um bom exemplo), os quais atingem  a singularidade numa determinada obra e depois  copiam a si próprios para vender. O que não foi o caso de Van Gogh, claro, século XIX tem muito a dizer ao século XXI. Van Gogh não vendeu. O século XIX tem muito a dizer e o momento SINGULAR da contracultura também.

 

A vida e a obra de Mané Garrincha e o canto de Elza Soares.

 

 

 

O futebol é négocio  para as massas mas não é inteiramente programado. Pode acontecer o gênio e a arte. Na música popular também. Feio é acontecer a prostituição do SINGULAR naquilo que as elites culturais proclamam como sendo o seu SIGNO.

Porque está camuflada.  E aí  no negócio das putas assumidas existe mais VERDADE.

 

  A voz de Roberto Carlos.

 

  A alma é singular, a salvação também, as religiões esqueceram-se disso . SUFI SURFISTA.

 

 

 

        O que haverá de comum entre Guido D’Arezzo e John Coltrane, passando por um musicólogo aficcionado do segundo?

 

 

         Guido d’Arezzo, monge da igreja de Roma,  que morreu no ano da graça de 1050, inventou  a pauta musical.  John Coltrane, monge do jazz, sabia ler música em pauta, mas quando o musicólogo lhe apresentou a transcrição de um solo seu, que o tal musicólogo, a duras penas, conseguiu realizar no papel da pauta, Coltrane simplesmente disse que não era capaz de o tocar.

 

          Entre a codificação da música e sopro do passarinho vai a mesma distância que entre a codificação das religiões e a experiência real do Ser.

 

          O passarinho da presença do Ser, na nossa janela, é um presente, vocação da espera em  nossa criança, evocada pelo mito do papai Noel.

 

 

 

 

 

                      DA CODIFICAÇÃO

 

 

 

    O fenômeno da codificação humana está intimamente ligado à  ausência de liberdade interior.

     Na pintura esta ausência leva à  uma pintura acadêmica. Isto é, pré codificada pela mente coletiva.

 

     Na música a um encadeamento de clichês, que só embotam o espírito.

 

     Na religião,  a uma simulação mental de procedimentos para a salvação.

 

    ( Esta simulação não pode ser levada a sério por humanos minimamente sãos, ela é cruel e anti-humana. Toda estória do pecado está encerrada aí.)

 

     O fenômeno da codificação humana retira-nos a hipótese da experiência genuína.

 

     Porém a experiência da liberdade interior pode ser direcionada a uma escolha de eleição. Por exemplo, um compositor genúino pode pintar acadêmicamente e vice-versa.

 

    Por que não ousamos a liberdade interior e reiteramos os processos codificadores em nossas vidas?

 

    Dois sujeitos podem se  sentirem identificados  por participarem, cada um na sua modalidade, de processos não codificados.

 

   Por exemplo, um bandido e um  poeta, um Mestre(Jesus) e uma prostituta( Madalena).

 

   O bandido  e a prostituta, situados no avesso da maya social, tem uma percepção aguçada para a hipocrisia  ou não do momentum.

   O bandido pode pressentir a descodificação no poeta e livrar a sua cara, isso tem acontecido, com maior probabilidade se  o bandido já  tenha observado de outras vezes o andar do poeta.

 

  Alguém quer investir na educação pela  não codificação mental da Criança?

  É que existe ainda uma Criança em todos nós.

         DO ENGANO, fel, breu e Sol  em Luiz Melodia

 

                                                                        Nova  Iorque Novo Brasil Você mentiu

                                                                                                                                É tudo espoleta!”

                                             

Nascido e criado no Morro de São Carlos, favela carioca sobreposta ao Largo do Estácio, quase no espaço,  Luiz Melodia é criador sutil de enigmas, pois sabe que “ o poeta sempre é malandro”, um Novalis re-encarnado por ali mesmo; enigmas que, submetidos a uma prova de coerência interna do sistema de suas composições-poemas, revelam que não são frases desconexas, para causarem efeito, como um dos grandes bahianos da MPB, também poeta,  um dia me  afirmou na praia da Boca do Rio.

 Do contrário, que equívoco  seria alguém  transmitir tanta emoção com o seu canto, utilizando-se do “auxílio luxuoso” do Blues, através de um canal repleto de palavras ocas.

 

POETA expontâneo, porém adepto do PENSAMENTO. Que não se distancia do seu objeto artístico, como  o fizeram  em geral os seus colegas da MPB, os que passaram pela universidade. (Com alguns momentos de exceção, que é o caso da  belíssima confissão Drão , de Gilberto Gil, embora esta totalmente controlada pelo consciente do autor. Quem mergulha  e quem simula o mergulho, esta é a questão.)

 

 Poeta que Começou com um pequenino enigma em Pérola Negra:  “BABY TE AMO NEM SEI SE TE AMO”.  Nos idos de 1972. Enigma  quasi desvendado quando se observa a repetição da palavra engano na mesma letra. (1). E continuou pela vida a fora a Pensar o ENGANO, O AUTO-ENGANO, O ERRO, a essência da rima AMOR-DOR. Sempre com uma dose de ironia.

 

  “AMOR SÃO PALAVRAS CITADAS QUE UM DIA TAL POETA CITOU”.

 Poeta pensador filosófico e ao mesmo tempo aquele que vive as suas próprias canções com a derradeira primitiva emoção. A arte da interpretação fica secundarizada diante do questionamento existencial-emocional, Melodia é bom mesmo cantando as suas coisas.

 

 

 

 

Sou peroba, sou a febre, quem sou eu?

Sou um morto que viveu corpo humano que venceu

Ninguém morreu ninguém morreu ninguém morreu

Tabuletas grandes letras feito eu

Abundantemente breu Abundantemente fel

Ninguém morreu ninguém morreu ninguém morreu

Conforme fiquei o tempo me embalava

Se a chuva é mais forte enchente levava

 Colete de couro com fios de nylon

No dia seguinte o seguinte falhou

A dança da morte ninguém frequentava

A cruz a distância do povo de nada

O morto mas vivo de vida privado

No dia seguinte o seguinte falhou

                                                             (Abundantemente morte)

 

 

E  PENSAR através da ELEGÂNCIA PATERNA da língua portuguesa.  (2)

 

“ESTÁCIO ACALMA O SENTIDO DOS ERROS QUE FAÇO ...”

                         

Como o fez também, curiosamente também oriundo do morro, o grande compositor Cartola.

 

Esta elegância da língua talvez tenha a ver com a linhagem nobre de africanos da qual  descenderiam Cartola, Nelson Cavaquinho, Jorge Benjor e Melodia. E isto não  tem a ver com status social, mas  antes com a necessidade de, sem outra alternativa e só através da linguagem, recuperarem inconscientemente a sua nobreza.

Elegância e ,diferentemente dos outros, o paradoxo do   ingênuo- acaso / preciso-múltiplo-sentido  no uso das palavras, desde que o poeta sempre é malandro, segundo o próprio Luiz Melodia.

Vejamos: “ despede pra mim um perfume como aquela flor” e “desprenda o teu corpo na minha vida”.

Mas também temos em Melô o puro sensorial saltando mui ràpidamente para o plano mitológico. Em Magrelinha:

 

 

       “o beijo meu vem com melado decorado cor de rosa

         o sonho seu vem dos lugares mais distantes terra dos gigantes

         super-homem, super-mosca, super-carioca, super-eu”

 

 

E a individuação  solar, mesmo que a indiferenciação coletiva reine por aí:

 

     “ Mesmo se tudo juntar por aí   Em nós  o sol há de sempre existir”

                                                     (Só)

                                              

Mais  um toque de mestre:  “Da Vida é amiga da Vida”.

                                                                                       (Amor)

 

Voltando atrás, a experiência do jovem Melodia:

EU FICO COM ESSA DOR OU ESSA DOR TEM QUE MORRER

A DOR QUE NOS ENSINA... E A VONTADE DE NÃO TER

SOFRER DE MAIS QUE FRUTO NÓS PRECISAMOS APRENDER

“EU GRITO E ME SOLTO  ... EU PRECISO APRENDER”

                                                                                        (Dores de Amores)

 

 

 

 

O tema foi : ERRO ... APRENDIZADO...ENGANO

 

 

A formulação de um pensamento na música popular, em oposição ao  verso de bela metáfora, não é  assim tão comum. Ou estarei enganado?

 

                                   I

 

       O poeta Melô localiza o seu problema,  dentro de si:

 

    “ Eu curo esse rasgo ou ignoro qualquer ser”

 

                                  II

 

       Rasgo que provoca uma dupla condição , aquela de passivo/ativo do ENGANO:

 

       Eu sigo enganado

       Ou enganando o meu viver”

 

 

 

 

                                  III

 

       ISTO POR QUE?, pergunto eu, humildemente. E vem a resposta:

 

       “POIS  quando estou amando é parecido com sofrer...”

 

 

       E termina com conclusão de ser um  aprendiz: “EU MORRO DE AMORES...EU PRECISO APRENDER”

 

 

        Mas aprender com quem? Por que não com a figura inusual, como aquela das FADAS:

 

        Com elas, veremos, Melô chega a um poema riquíssimo de simbolismo e ação.

 

 

Mas o ENGANO não seria condição geral?

 

 

 ATRAVÉS DO SEU RASGO EXISTENCIAL, intimamente ligado ao RASGO DA INTUIÇÃO, êle aponta o dedo à nossa CARA:

 

   CADA CARA REPRESENTA UMA MENTIRA

   NASCIMENTO, VIDA E MORTE QUEM DIRIA...

 

    Este  é o verso porventura mais atrevido da Música popular brasileira. (3)

 

    ( Cá entre nós, todos nós, sabemos intimamente da nossa máscara social, nossa mentirinha-mentirona, cada um que se salve ou não, enquanto isto o milagre da VIDA acontece, entretanto.)

 

       

 “da VIDA é amiga da VIDA / SEGREDOS SÃO MOMENTOS DE HORROR

 

os porcos extraviam amor

             com as feras o amor é amor

 

 A cor do seu sangue é vermelho/ vermelho é a cor do amor

Amor são palavras citadas

             que um dia tal poeta citou

 

eu fico nessa esquina tão divina mas não me fale de amar

por mera coincidência nessa esquina eu vi um cara tombar

 

      Amor são palavras citadas

             que um dia tal poeta citou                                                   (Amor)

 

 

 RETRATO FATAL DE UM RIO DE JANEIRO VIOLENTO  SOB A ILUMINURA DE UM “CRISTO REDENTOR”?

 

 Em MEMÓRIAS MODESTAS ( que titulo beleza para quem faz erros de concordância na linguagem do dia-a-dia) Melodia parece nos oferecer a profecia de um dia  em que “ AS CHUVAS VÃO CAIR MEU BEM MEU DEUS A CHUVA MOLHA TANTO”,  depois dele próprio se mostrar, tentando tirar a máscara.

 

          “ Se ando triste, mal, desconfiado, desvairado

          com cara de Santo, podes crer meu bem que Santo é um Santo”

 

 “ E por isto canto SANTO É UM SANTO nova imagem a respeitar”

       

 “ Eu conheço o Homem, o Lobisomem,  a moça linda vive a       pensar”

 

              “ Eu falo falo falo que não falo nada

 

                Eu mostro, tanto  mostro que não sou SANTO nada”

 

“ AS CHUVAS VÃO CAIR MEU BEM MEU DEUS A CHUVA MOLHA TANTO”

 

       Chegamos então às FADAS. Em que condição está o poeta quando do ENCONTRO?

 

 

                

                     Devo de ir fadas

                     Inseto voa e cego sem direção

                     Eu bem-te-vi ... nada

                     Ou fada borboleta ou fada canção

                     As ilusões fartas

                     A fada com varinha virei condom

                      Rabo de pipa, olho de vidro

                      Pra suportar uma costela de Adão

 

                      Um toque de sonhar sozinho

                      Te leva em qualquer direção

                       De flauta, remo ou moinho

                       De passo a passo Passo 

                       

                     

                    

           Êle é :  “INSETO VOA E CEGO SEM DIREÇÃO

          Êle não é:.    “ eu  BEM-TE-VI ...NADA”.

 

Observar, hipotético leitor, as relações inversas entre inseto e bem-te-vi, que é um pássaro comum no Rio de Janeiro e entre FADA BORBOLETA, FADA CANÇÃO (MULHER AMIGA )/ INSETO(agora e antes) e BEM-TE-VI (depois de  liberto).

  

Portanto:

 

            “DEVO DE IR, FADAS”

que são

            “ AS ILUSÕES FARTAS”

 

           A fada com um toque de varinha transforma-o em condão, o menino que existe nele, que brincava com  “rabo de pipa olho de vidro”.

 

(Olho de vidro , para quem não sabe ou não lembra, eram as bolas  de vidro  para um jogo da terra, no chão. As olho de vidro tinham uma mandala no seu interior.)

 

Assim poderia, novamente?,  suportar a futura, presente dor. “PRA SUPORTAR UMA COSTELA DE ADÃO”.

 

 

        Para lidar com a tal dor, Luiz Melodia já tinha tentado “SURRA DE CHICOTE” , uma experiência de sado-masoquismo, explícito, mas com um  raro enigma dentro de um vulgar refrão. E também  outro ironizando com o suicídio, quando diz : “Com caco de telha, com caco de vidro, da melhor maneira possível”.

 

      Para lidar com a tal dor.

 

É este o raro enigma:

 

 “VIRGEM SER pra querer uma surra de chicote de chicote de chicote pra SOFRER ” . Fica no ar  “VIRGEM  SER”,  sexualmente, ou virgem no apanhar de chicote ou virgem no sofrimento?  Só esta questão revela toda a grandeza de Luiz Melodia, que colocou isto numa letra de música popular... questão não abusiva, pois já demonstramos o quanto êle usa de malandragem e ambiguidade na vontade de SIGNIFICAR)

 

 

 

 

        FADAS seria uma iniciação para o desconhecido, “UM TOQUE DE SONHAR SOZINHO te leva em qualquer direção”,  com um Final de uma precisão cirúrgica,  com o verso “DE PASSO A PASSO PASSO”. É o que os antropólogos chamam de Ritual de Passagem. Isto é intuitivo, daí a beleza acrescida que transmite.

 

 

Vejamos agora o poeta apaziguado, QUASE UM NOVO RICO auto-irônico, “silenciando esta vontade em jazz,”  e generoso:

 

 “Gente coisa é outra fina,”

“boas frutas pães e vinhos”

  DIVIDINDO EMOÇÃO... AGORA SOU O SEU VIGOR”

                                                                        (Cuidando de você)

 

Mas desta vez SEM ENGANO:

 

   NOVA IORQUE NOVO BRASIL VOCÊ MENTIU

   É TUDO ESPOLETA!”

                                                 (Cara a Cara)

 

Parabéns Melodia, não tem jeito, você é o cara! *

 

Oluap Atarab,

Poeta, teve LEVE LAVE LOVE publicado por Massao Ohno-1978.

17 de junho de 2000, Rinchoa.

 

https://members.tripod.com/OluapAtarab

 

 

 

 

* ) parafraseando o que Melô disse de Zé Keti, em show gravado.

 

 

1)

 

     Na canção Pérola Negra:

 

 “ Tente apagar o seu novo ENGANO.”

 “Se intere da coisa sem haver ENGANO, Baby te amo nem sei se te amo”.

 

Segundo considerações biográficas anunciadas por Wally Salomão em encontro sôbre a contracultura realizado no teatro do Planetário, o engano também envolveria a própria sexualidade, já que Pérola Negra seria um travesti do Estácio. A bissexualidade generalizou-se entre os artistas  da contracultura  nos anos 70 e em vários casos redirecionada.

 

2) Da canção Pra Aquietar, do álbum Pérola Negra.

 

3)

  Eu vou ser mais atrevido AINDA ao dizer que se o verso acima, da canção Juventude Transviada, viesse estampado numa obra de Shakespeare,  seria com certeza mais citado.